Estamos vivendo tempos estranhos, né? Rotinas foram alteradas de maneira drástica de uma hora para outra, deixando as pessoas com mais dúvidas e apreensões do que respostas.
Não é a primeira vez que a humanidade enfrenta uma crise complexa, porém. Na última semana, o Colégio recebeu o sr. Joshua Strul, de 87 anos, um sobrevivente do Holocausto que vive no Brasil desde os anos 1950 para uma conversa com os estudantes do 8º ano do Fund. 2 ao 3º ano do Médio.
“Precisamos combater e repudiar, com todas as nossas forças, todo tipo de discriminação contra qualquer minoria. Precisamos combater o bullying, as fake news.” O relato de Joshua é fundamental em todas as épocas, e neste momento em particular, para reforçar valores humanos que, de tão básicos, às vezes podem ser tomados como garantidos - mas não são: a valorização da vida de todas as pessoas, a tolerância, a empatia, o respeito, a noção de coletividade para superar momentos difíceis.
Joshua vivia em um pequeno vilarejo romeno chamado Moineshti, com cerca de duzentas famílias judias que conviviam em harmonia com os outros habitantes, que eram cristãos. Era uma criança como outras: tinha uma vida de tranquilidade absoluta com os 5 irmãos, jogava futebol, bolinha de gude, circulava e brincava livremente. Seu pai era um próspero comerciante; sua mãe, professora.
Até que, em 1941, em plena Segunda Guerra, quando ele tinha 8 anos, o exército alemão invadiu os países balcânicos - e tudo mudou para sempre. Os judeus passaram a ser identificados com uma estrela de davi amarela que era costurada à roupa e proibidos de usar transporte público, frequentar restaurantes, sentar em bancos de praça. Foram obrigadas a declarar todos os seus bens e entregá-los aos alemães, sob pena de fuzilamento. Os estabelecimentos judeus foram todos marcados, e teve início uma campanha oficial de boicote contra eles - seu pai se endividou porque a clientela praticamente desapareceu. As três sinagogas do vilarejo foram profanadas e transformadas em estábulo. A imprensa romena insuflava a população contra os judeus, que eram insultados e chamados de parasitas.
Então, veio o isolamento. Os judeus do vilarejo foram levados à cidade de Bacau, sessenta quilômetros distante, onde a família de Joshua passou a viver numa espécie de gueto, confinada com outras famílias em barracões de madeira sem condição alguma de higiene - eles dormiam em colchões de palha infestados de piolhos e percevejos.
“Era um sofrimento indescritível; passamos fome e minha mãe chegou a fritar grama em gordura de galinha para termos o que comer. Fazia um frio congelante no inverno e um calor insuportável no verão.” Eles também comiam casca de batata, folha de cenoura e uma ração de pão duro. Seu irmão caçula, de 2 anos, morreu de inanição durante a Guerra.
Certa vez, ele saiu sozinho e apanhou de meninos de 14 anos, que o xingaram de “judeu sujo, porco, assassino de Jesus”. Depois de voltar sangrando para o barracão, sua mãe o proibiu de sair de lá a partir de então. A mãe, além de sempre tentar passar coragem, atuava como professora no confinamento: ensinava geografia e gramática romena, por exemplo.
Apesar de ter ficado confinado entre 1941 e 1944, Joshua diz que teve a sorte de não ser enviado para um campo de concentração “por milagre divino” e “por falta de organização dos soldados”. No dia em que seriam enviados, estavam todos na estação ferroviária de Bacau, “um cenário aterrador, um vento cortante, mães com bebês de colo empurradas a chicotadas pra dentro de vagões de gado, soldados com cachorros”, quando começou uma tempestade de neve. Não havia mais vagões vazios para embarcar todos os judeus.
“Os soldados já estavam cansados, todo mundo havia madrugado lá e, quem não tinha sido embarcado, foi mandado de volta aos barracões para aguardar uma nova ordem de embarque. Até hoje não aconteceu”, conta o bem-humorado Joshua.
“O Holocausto não foi obra do acaso. Foi arquitetado pela nata de um governo autoritário, formado por médicos, engenheiros, cientistas, todos acadêmicos com instrução superior, e apoiado pela população de um país que contribuiu para o mundo com filósofos, intelectuais, escritores. O antissemitismo, que sempre existiu, foi levado ao extremo, o que ficou conhecido como a solução final: um plano para matar o maior número de judeus da maneira mais barata possível.”
Joshua, como muitos sobreviventes do Holocausto, não conseguia falar de maneira tão aberta sobre sua história até cerca de dez anos atrás, mesmo com sua família. A dor era muito grande. Até que conheceu a obra do historiador inglês David Irving, que negava que o Holocausto tivesse acontecido (nos anos 1990, a história resultou em um livro e, recentemente, no filme Denial). “Nesse momento, eu resolvi que precisava dar o meu testemunho para o maior número possível de pessoas.”
A família ainda chegou a voltar para Moineshti depois do fim da Guerra e conseguiu reerguer a casa, que estava “depenada”: sem portas nem janelas, sem estrutura hidráulica. Mas a Romênia nesse momento estava sob o domínio da União Soviética de Stálin e foi para Israel. Mas a família não se adaptou.
O senhor romeno, que fala português com um sotaque carregado, chegou ao nosso país na década de 1950. Seu irmão mais velho já morava aqui e, como Joshua quando chegou, trabalhava como mascate, vendendo roupas e cobertores. “Aqui eu fiz família, tenho quatro filhos e dez netos, trabalhei muito e posso professar livremente a minha fé.”
A conversa com Joshua foi realizada em parceria com o curador do Memorial do Holocausto de São Paulo, o fotógrafo Luiz Rampazzo, que dirigiu um documentário com relatos de sobreviventes do Holocausto que vivem no Brasil. O projeto também virou o livro Sobreviventes, que está disponível na Biblioteca do Colégio com autógrafo de Joshua.
“Eu gostaria de ter vindo aqui para contar uma história mais alegre, mas é preciso que vocês, jovens, saibam muito bem o que aconteceu.” Joshua, porém, não perdeu a oportunidade de fechar com uma piada de judeu em campo de concentração - só ele pode.
Quer saber mais sobre histórias do Holocausto e da Segunda Guerra? A nossa Biblioteca tem muitos títulos sobre o assunto, como Diário de Anne Frank, O menino do pijama listrado, a premiada HQ Maus e A lista de Schindler, além de muitos livros de história.
*Imagens do Colégio: Lorena Bueno
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