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  • Ana Luiza Marques Bastos

Para imaginar e pensar o Brasil

Dando continuidade à nossa programação de setembro, a professora Ana Luiza Bastos escreveu um texto cheio de referências históricas sobre o livro "Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil". Escrito por Debret, pintor francês que passou por aqui em 1816, esta obra, que está disponível digitalmente em na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, é um retrato do Brasil no século XIX e serve para contextualizar o leitor sobre a experiência de Debret enquanto pintor, mas também enquanto historiador.


A obra que ofereço ao público é uma descrição fiel do caráter

e dos hábitos dos brasileiros em geral.

Jean-Baptiste Debret, 1834.


No conjunto dos festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil, em 1972, encontramos a segunda edição em português da obra Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil de Jean-Baptiste Debret. É uma nova publicação da primeira edição em português, que, junto à coleção Biblioteca Histórica Brasileira, organizou os três volumes da edição original francesa em dois tomos (tomo 1, volumes 1 e 2, e tomo 2, volume 3). Há ainda outras duas edições, a de 1980, também em dois tomos e em preto e branco, e a de 2016 (FONSECA, 2017), em volume único com imagens coloridas. A última publicação celebra o centenário da vinda dos artistas franceses para o Brasil, entre os quais estava o pintor neoclássico Jean-Baptiste Debret.


Debret chegou à cidade do Rio de Janeiro em 26 de março de 1816 (STRAUMANN, 2001, p. 8), como integrante de um grupo de artistas e cientistas franceses para fundar e ensinar na Academia Imperial de Belas Artes. A cidade, então capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, acolheu os artistas que logo começaram a fazer registros da Corte portuguesa. O trabalho foi financiado pelo governo português, enquanto esteve no Brasil, e posteriormente, pela corte da nação independente até a abdicação de D. Pedro I.

Na carta dedicatória da edição francesa, Debret se declara um correspondente da Academia de Belas Artes do Instituto da França. Apresenta-se como "historiador fiel", que reuniu na "obra sobre o Brasil os documentos relativos aos resultados dessa expedição pitoresca" (Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin). Em seguida, na introdução do livro, adverte que produziu sua história do Brasil desde a sua chegada ao Rio até 1831. O livro foi organizado a partir do material pictórico e escrito que Debret reuniu ao longo dos 15 anos vividos no Rio de Janeiro. São cerca de 150 litografias, produzidas pelo próprio Debret a partir desse seu material, ao qual foram associados textos narrativos (FONSECA, 2017) (STRAUMANN, 2001, p. 10).

Como o próprio Debret esclarece na introdução, a obra quer ser "uma descrição fiel" de "historiador", ou seja, está dedicada ao conhecimento das particularidades da civilização europeia transladada para os trópicos. Contudo, não apenas a Corte e os eventos políticos foram descritos, há também o "caráter" e os "hábitos dos brasileiros em geral" (DEBRET, 1972, p. 8). Por isso, pitoresco é tanto o objeto de estudo, quanto a forma pictórica pela qual se faz a apresentação do objeto. Para amarrar a viagem ao projeto civilizacional (SIQUEIRA, 1994, s/p), a narrativa se acrescenta às imagens, que do colorido das aquarelas passaram ao preto e branco das litografias.

Se, na França, a função da obra era também ensinar aos europeus sobre os "hábitos dos brasileiros em geral" (PICCOLI, 2007), a condição pitoresca somada à histórica precisou integrar o particular e o individual ao ambiente natural. O primeiro volume vai ser dedicado aos indígenas e às florestas, úmidas e impenetráveis pelos raios do sol. Os indígenas foram distinguidos entre civilizados ou caboclos e selvagens, têm aspecto físico robusto, quase monumental, sobretudo os adjetivados por ferozes ou selvagens.


No volume 1, tomo 1, as pranchas 11 e 12 mostram indígenas armados para a luta. Nomeados Coroados, são apresentados em meio a mata densa. No centro das imagens, vemos o líder do grupo vestindo uma saia que lembra os romanos, ornada de penas, ainda muito conforme os princípios da estética neoclássica. O chefe Coroado traz enfeites de penas na cabeça, nas pernas e nos braços. A força pode ser sentida nos contornos dos músculos, mas também na natureza que os cerca. O brio do guerreiro não desaparece nem mesmo na retirada.

No volume 2 da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (tomo 1 nas edições de 1940 e 1972), Debret vai "acompanhar a 'marcha progressiva da civilização no Brasil'" (DEBRET, 1972, tomo 1, p. 84). Ocorre que o Brasil, para Debret, é o Rio de Janeiro, pois, embora tenha viajado pelas províncias de São Paulo e Minas Gerais, fixou residência no Rio, onde lecionava na Academia Imperial de Belas Artes e trabalhava no seu ateliê do Catumbi. Não por acaso, na introdução do volume, é narrada a história do Brasil e feita a descrição geográfica da cidade do Rio.

É muito importante considerarmos dois pontos correlatos nessa amálgama de pitoresco e histórico. Primeiro, o Rio de Debret, início do século XIX, caracterizava-se por ser uma "cidade mestiça". Pelas freguesias, nas ruas e nas casas, os europeus, os africanos, os indígenas e demais pessoas nascidas na terra, todos e todas conviviam sob uma ordem de exploração violenta do trabalho escravo. Segundo, se a obra que Debret produziu no Brasil sofreu mudanças no que diz respeito aos preceitos do neoclassicismo, passando a exibir as imperfeições da natureza, o real e os fatos, isso se deve a que "certos traços da sociabilidade brasileira" se lhe impuseram com força, tornando a obra tanto mais complexa (NAVES, 2011, p. 49).

O "dilema brasileiro" de Debret era compor uma forma capaz de manter vínculos com a realidade social do país sem abandonar "a dimensão crítica da postura ética neoclássica" (NAVES, 2011, p. 79). Optou por abandonar, primeiro, a rigidez da pintura a óleo pela aquarela. O que lhe permitia não ter de tratar com a grandiloquência das obras neoclássicas e, simultaneamente, oferecer um aspecto ralo, transitório e inconsistente às cenas urbanas.

A maioria das cenas urbanas está no volume 2 do tomo 1 e no volume 3 do tomo 2 da edição de 1972. No conjunto dos desenhos e aquarelas, convertidos em litografias por Jean-Baptiste Debret, os escravizados são apresentados de diferentes maneiras. Por vezes, os escravizados surgem submetidos à promessa civilizatória que lhes oferece farelos. Como em O jantar brasileiro (prancha 7, volume 2), composição de um ambiente íntimo, orientalizado por meio da negra triste que abana os senhores com um grande leque de penas. Em outras situações, no entanto, as condições econômicas suspendem as distinções entre brancos e pretos, ou quase… Na prancha 34, volume 2, Família pobre em sua casa, Debret escreve: "Escolhi para este desenho o momento do regresso da negra, que está entregando à sua ama o lucro do dia, do qual retirou o necessário para a aquisição de uma penca de bananas destinada à ceia frugal de todos os habitantes da casa". (DEBRET, 1972, tomo 1, p. 225). Além da jovem que recebe o ganho da escravizada, vemos também uma velha que fia sobre o tablado. Pela casa, ciscam as galinhas em meio aos objetos de cozinhar e coser. A porta quebrada arremata a pobreza do ambiente no qual não encontramos nenhum homem. Enfim, a pobre nivela três mulheres…


Na cidade do Rio, assim como em Salvador, por exemplo, os escravizados de ganho circulavam para vender mercadorias e serviços. Na prancha 6 (volume 3, tomo 2), O vendedor de flores na porta da igreja, a par da crítica que se faz ao excesso de elegância que Debret atribuiu ao negro vendedor, devemos destacar a mescla entre ambiente público e doméstico. O modo como o negro segura a bandeja de fatias de coco, grande e pesada, e como oferece as flores para a jovem senhora e suas acompanhantes, também negras, assemelha-se às maneiras de um copeiro. O capricho nas roupas, na bandeja de fatias de côco e nas flores não cabem nas ruas imundas do Rio. Isso torna-se ainda mais evidente quando olhamos ao fundo um grupo de pessoas vestidas com mantos cinzas próximas de um esmolante. Acrescente-se ainda que o trejeito sedutor do preto esguio a vender flores, não se deixa passar despercebido ao vermos, na sombra da senhora rica, uma mocinha preta tímida, avexada pelo desejo que não se permite ignorar.


Uma outra aquarela que impõe uma ordem improvável à cena está na prancha 23 (volume 2, tomo 1), Mercado da Rua do Valongo. A cena é um imenso ambiente fechado, telhado alto, paredes caiadas, janelas pintadas de verde como a grande porta aberta. O piso é de madeira, também em paralelas, e muito limpo. Nas paredes de fundo e da lateral esquerda, há dois bancos compridos nos quais estão sentados negros para a venda. São como objetos. No chão, crianças negras estão em roda a brincar. O dono do mercado, branco e gordo, está sentado em uma cadeira de madeira, com pés torneados e encosto alto. De pé, um outro homem branco, de botas, chapéu e boas roupas, negocia a compra de uma criança escravizada. Essa cena força uma ordem, quase uma lisura, para o violento ato de comercializar gente. Não dá para deixar de pensar que a crítica ao traficante de escravizados, gordo e ocioso, se esvai na higienização do mercado.


Para fechar nossos exemplos, "as correntes, as máscaras de metal, os colares de ferro e as cenas de punição" (NAVES, 2011, p. 83). As cenas de castigo causaram horror aos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, já que faziam parecer que todos os senhores castigam violentamente os escravizados (NAVES, 2011, p. 112-3). Na prancha 45 (volume 2, tomo 1), encontramos duas cenas relacionadas aos castigos, uma pública, a Aplicação do castigo de açoite, e outra reservada, Negros ao tronco. Na cena pública, ao tronco vertical, plantado no centro da praça cercada por sobrados, tendo à esquerda a torre de uma igreja católica, está preso um homem negro sangrando. Populares e outros negros acorrentados, que esperam o mesmo castigo, vêem tudo acontecer com pesar e conformidade. Na cena reservada ou fechada, Negros ao tronco, os negros estão presos pelas pernas ou pela cabeça a um longo e pesado tronco posto em posição horizontal. O ambiente é escuro e, além dos castigados, vemos instrumentos usados para controlar os animais, como arreios, selas de montaria e uma canga de boi. Assim como em Aplicação do castigo de açoite, em cena vemos apenas personagens pretos. Na cena pública, o carrasco é negro e o povo está tão ao fundo que mal podemos distinguir os que não o sejam, na cena reserva, além dos castigados só existem objetos.


Debret descreve o ritual diário dos castigos a partir da "aplicação da lei", requerida pelo senhor de escravos, que assim "obtém uma autorização do intendente da polícia" (DEBRET, 1972, tomo 1, p. 264). Logo, o castigo era legal. E podemos questionar: o que existe de diferente nessas cenas de castigos no Rio de Janeiro, se o corpo do trabalhador também era alvo de maus tratos nas fábricas das potências industriais europeias? Penso que as cenas de castigos apresentadas por Debret, por várias vezes, não querem dar a ver quem castiga e por que se castiga. Os pretos açoitados são trabalhadores que não se submeteram à ordem desumana de exploração de suas forças. Outras vezes, como no caso prancha 25, desse mesmo volume, intitulada Feitores castigando negros, as cenas mostram atos de tortura a céu aberto. Embora exista um branco na cena, não é um senhor, mas o feitor, que, à semelhança de outro visto ao fundo, violenta o corpo de alguém a mando de…


Sendo assim, a leitura da obra Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil de Jean-Baptiste Debret deve nos levar a, primeiro, imaginar a vida das pessoas e a ordem da sociedade no ambiente da cidade do Rio de Janeiro como capital da nação independente, que conservou o escravismo colonial e demais práticas políticas e econômicas. Segundo, estimular a pesquisa de dados e informações que possam substancializar um conhecimento conceitual da história do período, a fim de que entendamos os mecanismos institucionais brasileiros e o arbitrário cultural que dispergimos. Terceiro, impor uma reflexão questionadora das práticas e modos de representação, figuração e imaginação da sociedade brasileira no passado, assim como aqui e agora.

Enfim, ao visitar um museu, diante de qualquer peça ou vestígio do passado, sempre se pergunte: Por que isso tem esta forma? Por que isto foi escolhido como relíquia e esteio da memória coletiva? Quais ideias e imagens isto aqui quer que nós tenhamos? Quais fatos, ideias e imagens querem que jamais venhamos a ter?

 

Referências bibliográficas


Edições da obra Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil de Jean-Baptiste Debret

DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. 2 tomos. São Paulo: EdUSP, 1972.

______. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris : Firmin Didot Frères, 1834-39. Versão digitalizada dessa primeira edição francesa:

Instituto Moreira Salles, Coleção Martha e Erico Stickel. Disponível em https://ims.com.br/por-dentro-acervos/viagem-pitoresca-e-historica-ao-brasil/

Textos de divulgação da edição de 2016

Artigos e capítulos sobre a obra Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil de Jean-Baptiste Debret

BRASILIANA ICONOGRÁFICA, A guerra sem fim contra a população indígena brasileira, 20/dezembro/2019. Disponível em https://www.brasilianaiconografica.art.br/artigos/20237/a-guerra-sem-fim-contra-a-populacao-indigena-brasileira

CARDOSO, Rafael (org.) Castro Maya. Colecionador de Debret. São Paulo: Capivara/Rio de Janeiro: Museu Castro Maya, 2003. Edição bilíngue.

NAVES, Rodrigo. Debret, o neoclassicismo e a escravidão, in A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 43 a 145.

PICCOLI, Valéria. O Brasil na Viagem Pitoresca e Histórica de Debret. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 1, jan. 2007. Disponível em http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_debret_vp.htm

SIQUEIRA, Vera Beatriz. Debret: aquarelas do Brasil, in Catálogo da exposição Aquarelas de Jean-Baptiste DEBRET. A cidade e o trabalho. Espaço Arte Barra Shopping, 20/set a 27/nov de 1994.

STRAUMANN, Patrick (org.). Rio de Janeiro, cidade mestiça. Nascimento da imagem de uma nação. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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