"...Em fevereiro, tem carnaval..." e em setembro, o Brasil completa 200 anos de independência. E o que muda com isso? Segundo o professor Eduardo Ruiz, chileno, mas que mora no Brasil há muitos anos, a perspectiva dos 200 anos de independência é pouco tratada na nossa nação, se compararmos a outras datas comemorativas; vejamos os 100 anos da semana da Arte Moderna, por exemplo. Sem desmerecimento a outras datas, o professor Eduardo traz uma reflexão importantíssima para os dias de hoje e que nos faz pensar nessa data agora em fevereiro, no inicio do ano, para projetarmos mais 200 anos, quem sabe, de uma republica definitivamente brasileira.
“O ano começa depois do carnaval”, é uma das máximas brasileiras que, desde a minha chegada a este país, escuto a cada ano. Um misto de lenda e realidade, sem dúvida.
Este ano de 2022 marca a comemoração dos duzentos anos da independência do Brasil, fato acontecido em 7 de setembro de 1822. Diz a História oficial em seus manuais, que Dom Pedro, príncipe regente, foi alcançado por emissários de José Bonifácio. No alto de uma colina próxima do riacho Ipiranga, de onde se avistava a cidade de São Paulo, a comitiva que retornava para o Rio de Janeiro após realizar obrigações oficiais na província, foi abordada pelo major Antônio Ramos Cordeiro que entregou ao príncipe grave correspondência.
Cansado pela viagem, pelas pressões políticas, Dom Pedro declarou à comitiva que Portugal pretendia massacrar o Brasil, começando pelo fim do seu ministério. Exigiam seu imediato retorno a Lisboa e a indicação de um novo conselho administrativo para o reino dos trópicos, que retornaria a seu papel inicial como colônia. Deu-se que, arrancando a fita azul-clara e branca (cores constitucionais de Portugal) que estava costurada a seu chapéu bicorne, tomado por uma fúria patriótica, bramou à sua tropa: “É tempo! Independência ou morte! [...] Estamos separados de Portugal.
Dependendo de quem conta a História, houve algumas semelhanças e adendos, como por exemplo o relato do major Francisco de Castro Canto e Melo, que todos seguiram estas palavras com um “juramento de honra que para sempre os ligava à realização da ideia grandiosa de liberdade”.
Anos mais tarde, este mesmo major Canto e Melo, irmão de dona Domitila, a amante mais famosa de dom Pedro, afirmou que este evento foi de grande manifestação e adesão popular, mas sabemos que a memória muitas vezes quer confundir a História, engrandecendo e romantizando, ataviando o fato com desejos e idealizações pessoais.
O relato oficial conta sobre um ermo nas proximidades do riacho Ipiranga, sítio em que estava o príncipe e sua comitiva, alcançados por mensageiros vindos da capital do reino. Nada faz presumir a presença de populares que aderiram entusiastas à proclama independentista, como podemos ver na leitura que faz Pedro Américo na pintura mais célebre da proclamação independentista “Independência ou Morte” (1888). Na obra aparecem figuras populares, marginalizadas dentro da tela: um camponês, um trabalhador e um viajante, sem saber o que está acontecendo.
Aqui é onde subjaz um dos mais importantes problemas da nossa identidade: não fomos convidados à festa emancipatória. O povo e suas diferentes classes sociais, suas demandas, suas ideias e projetos políticos, suas visões e olhares foram reduzidos aos interesses de um grupo, a aristocracia fajuta e escravocrata. E de um homem, o próprio imperador Dom Pedro I, comandante do exército, que tendo a opção de retornar a Lisboa com coroa, mas sem poder, optou por seus próprios negócios.
Esta barreira proposital para o envolvimento da cidadania, dos negros libertos e escravos, dos índios, das mulheres, da burguesia, dos estrangeiros (salvo o imperador), significou um entorpecimento na compreensão do “Brasil” (um país para quem?) e destes duzentos anos. Será que somos independentes? E se somos, de quem e do que somos independentes?
Talvez o que nos ajude a vislumbrar um pouco esta realidade seja o simples fato do nosso próprio desinteresse por tão importante data: 200 anos da independência; e não há uma mobilização nacional, privada ou pública para comemorar, isto é, trazer à memória.
Sabemos que é ano de copa (como poderíamos esquecer), sabemos que é ano de eleição, e agora que acabou o carnaval, também é o momento oportuno de repensar nosso país (1822-2022). É ano de compreender o que queremos como nação, mas desta vez, convidando a todos os atores sociais para projetar os próximos 200 anos, agora sim sabendo o que é o Brasil. A outra opção é continuar cantando nos episódicos momentos de crítica “que país é esse” e dançando o “pacato cidadão”.
Feliz 2022!
Bibliografia:
FAUSTO, Boris. História do Brasil, São Paulo: EDUSP, 2012.
MICELI, Paulo. O Mito do Herói Nacional, São Paulo: Contexto, 1991.
SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
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