Autoria de Adriana A. de Paiva, professora de Literatura do Ensino Médio, formada em Letras, especialista em Literaturas em Língua Portuguesa e mestra em Educação pela Unicamp.
Para Antonio Candido, a literatura "(...) não corrompe, nem edifica, mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver". Uma das obras que perfeitamente exemplificam a fala desse importante crítico literário é “A Peste”, do escritor franco-argelino Alberto Camus, ganhador do Nobel de Literatura em 1957 por sua importante produção literária.
“A Peste” inicia-se com uma cena que, aparentemente banal, mudará profundamente a vida dos moradores da cidade de Oran, na Argélia, num ano indeterminado de 1940: o surgimento de um rato morto. Após o primeiro óbito literalmente ratuíno, outros surgem, 3, 12, 25, 50, ...
“(...) nos dias que se seguiram, a situação agravou-se. O número de roedores apanhados ia crescendo, e a coleta era a cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrer em grupos. Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente seus guinchos de agonia.”
Pouco tempo depois, os cidadãos de Oran são acometidos por estranhos sintomas: febre alta, os gânglios do pescoço e os membros inchados, dores intensas. Era a peste. Seres passam a morrer na assustadora proporção que outrora morriam os ratos. Diante da gravidade da situação, Rieux, benevolente médico, convoca uma reunião com o prefeito e outros membros da cidade para que sejam tomadas medidas para combater a terrível epidemia que poucos queriam nomear.
“Pela rapidez com que a doença se propaga, se não for detida, pode matar metade da população em menos de dois meses. Consequentemente, pouco importa que lhe deem o nome de peste ou febre de crescimento. O essencial é apenas impedi-la de matar metade da cidade.”
No entanto, apesar da gravidade da situação e dos reais alertas de Rieux, o prefeito, tratando a doença de maneira eufemística, demora a agir. O descaso e a falta de decisão das autoridades resultam em grande tragédia: a morte transborda em cemitérios superlotados e em dados estatísticos de jornais.
Embora o flagelo deixe de ser abstração, persistem as tímidas medidas da administração pública em prol a economia. Os veículos de comunicação dividem-se entre um falso otimismo e a comunicação displicente sobre as mortes. E como se não bastasse, há ainda e a indiferença daqueles que não foram assolados pela peste. Ações que somadas resultam num absurdo cenário que indigna aqueles que veem humanamente a situação.
"Mas o que são 100 milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E visto que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados ao longo da história esfumaçam-se na imaginação. (...) Dez mil mortos são cinco vezes o público de um grande cinema. Aí está o que se deveria fazer. Juntar as pessoas à saída de cinco cinemas para conduzi-las a uma praça da cidade e fazê-las morrer em montes para se compreender alguma coisa. Ao menos se poderiam colocar alguns rostos conhecidos nesse amontoado anônimo. Mas, naturalmente, isso é impossível de realizar e, depois, quem conhece dez mil rostos?"
Conforme a peste distancia-se de seu fim, alguns cidadãos ficam dopados no próprio sofrimento, outros tentam seguir com seus hábitos, outros ainda saem em busca de gozar a vida. De todo modo, todos agora “se tornavam sensíveis às cores do céu e aos odores da terra…”.
Antes preocupados em “fazer negócios”, sem tempo para reflexões, os cidadãos de Oran viram-se obrigados a pausar a rotina e olharem para si e para os outros:
“Mas, na realidade, podia-se dizer nesse momento, nos meados do mês de agosto, que a peste tudo dominara. Já não havia então destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste e sentimentos compartilhados por todos.”
A peste dura exatos dez meses, tempo que transforma para sempre a vida dos cidadãos de Oran. Muitos perdem, para sempre, entes queridos, outros reconhecem que sacrificavam suas vidas em nome à eficácia, outros ainda se percebem doentes antes da peste chegar. Percebem que eram “empesteados” pela ganância e indiferença.
Através de fortes cenas, como a morte de um grande comerciante sobre a cama onde armazenara gêneros alimentícios para vendê-los mais caros, Camus propõe uma reflexão sobre o que realmente deve ter valor em nossas vidas.
A obra de Camus é mais do que uma história de combate a uma epidemia, é uma leitura sobre a luta coletiva contra os sofrimentos causados por uma patologia abstrata: o egoísmo. Sentimento que nos separa em nome de interesses pessoais, de um “humanitas” machadiano.
Numa atualidade repleta de intolerância, individualismo e pós-verdade, a obra de Alberto Camus tem o poder de expandir nossa reflexão social e ontológica, pois nos convida a enxergar o elo de cada um com a humanidade e a sua história. Parafraseando Candido, “A Peste” nos humaniza porque nos permite ver, viver. Coloca-nos em lugares variados de contemplação e faz com que vejamos com olhos mais críticos e sensíveis o que se passa em nossos dias.
“O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.”
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Referências:
Candido, Antonio. A literatura e a formação do homem. 32 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2002.
Camus, Alberto. A Peste. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record/Altaya, 1997.
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