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  • Giulia Yokomizo Girardi

O Menino, o pavão e o vagalume

Atualizado: 7 de jul. de 2020


Neste 12 de Outubro, dia em que se celebra a criança, o imperativo é a esperança. A infância, enquanto habitat natural dos sentimentos mais positivos, alimenta os adultos com a crença num futuro mais brilhante nas situações de adversidades que enfrentam durante a vida. A criança é habitante de um mundo dos sonhos, da plenitude e da onipotência; nesse contexto, ela é a força mais absoluta e a dona de todas as coisas. Quando se depara com a realidade dura dos fatos e dores, é a primeira a cultivar a esperança e a mais empenhada em não se deixar abalar.

Plenamente inserido nessas temáticas está “As margens da alegria”, de Guimarães Rosa, o primeiro de 21 contos que compõem o livro Primeiras Estórias, publicado em 1962. Há a união da imagem pura e virginal do olhar da criança à grande temática rosiana: a travessia. Trata-se, portanto, do processo de transição de um Menino, representante de todos os meninos e meninas em processo de compreensão da realidade, entre o mundo dos sonhos e o mundo real.

"Esta é a estória. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho.”

A história segue a visita do Menino à construção da cidade de Brasília: no local onde nascia um novo Brasil, estava para nascer um outro menino. Ainda muito inserido no “caso de sonho”, depara-se com um peru no quintal de onde está hospedado, e, no ápice do estado de encantamento em que é envolvido pela presença do animal, sua compreensão dele se dá por uma imagem absoluta e majestosa:

“(...) o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento”

O peru transbordante passa a ocupar o centro de seu pensamento, e não há nada que possa tirá-lo da fixação que obteve com a aparição daquela ave, nem mesmo o passeio que dão pela cidade em construção, com toda a natureza exuberante e envolvedora. No retorno, mal se alimenta e já sai apressado à procura do peru. Não o encontra, “só umas penas, restos, no chão”. Descobre-se, então, que o animal foi morto para ser comido no dia seguinte, em ocasião de um aniversário. Imediatamente, a morte do peru reflete-se no Menino como a perda do Paraíso, em que ele é posto abruptamente no mundo real, desprovido de magia e encantos. O mundo como ele é.

“Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam?”

Esse processo de ruptura com a infância pura, até mesmo sagrada, é o evento fundador de uma travessia em que numa margem está a alegria e a inocência, enquanto que na outra está o mundo de perdas e dores. Quem impulsiona o barco nessa transição é a morte do peru majestoso, e as considerações do Menino parecem compreender as novas regras do mundo:

“(...) descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia.”

Há, no entanto, entre todas as trevas e tristezas da margem em que o Menino está, uma luz pequena, quase imperceptível, que o apresenta no que consiste os sonhos e a alegria neste novo mundo. A aparição de um vagalume quebra a dominação do escuro da noite, ainda que pequena, ainda que “num instante só”. No mundo hostil, a alegria é oscilante, a vida alterna-se entre luz e sombras, e os sonhos são intermitentes. A esperança só se torna uma opção possível em momentos de maior escuridão, e acreditar em sua existência é essencial para não deixar perder as cores do mundo, o certo toque de sonho, por menor que seja. A travessia do Menino o tirou do Paraíso infantil e seguro para introduzi-lo à realidade avessa, garantindo que ele soubesse que a esperança deve ter papel fundamental numa existência que ora se acende, ora se apaga, mas sempre tornará a romper a escuridão.

“Era, outra vez em quando, a Alegria.”

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