O livro escolhido pela professora Ana Carolina Alecrim Benzoni ganhou o prêmio Goodreads de Ficção em 2020. Chegou ao Brasil por intermédio do Clube de Livros "Tag Experiências Literárias" e depois foi publicado pela editora Record em uma edição belíssima em que a capa brinca com a premissa da biblioteca esmeralda do livro, mas além dessa beleza extrínseca, a obra tem uma profundidade no tema que mexe com qualquer pessoa que dê uma chance para a leitura. Uma obra arrebatadora e que com maestria apresenta uma dos princípios da literatura: a possibilidade de experienciar vidas que não as nossas e refletir sobre essas vivências.
"Entre a vida e a morte, há uma biblioteca", disse ela. "E dentro dessa biblioteca as prateleiras não tem fim, Cada livro oferece uma oportunidade de experimentar outra vida que você poderia ter vivido. De como as coisas seriam se tivesse feito outras escolhas… Você teria feito algo diferente, se houvesse a chance de desfazer aquilo de que se arrepende?"
Imagem promocional do livro "Biblioteca da meia-noite" publicado no Brasil, inicialmente, pela TAG inéditos. Créditos: Ler pra que?
(...) "E se eu tivesse feito medicina?" E se eu tivesse me casado mais tarde?" " E se eu tivesse tido filhos?", "e se eu tivesse ido viajar com aquela turma?", "e se eu tivesse dito não para aquela proposta?" (...)
Quantas vezes na vida, entre o respirar de uma atividade e o pulsar de outra, nos deparamos com questionamentos como os expostos acima? Se viver é um eterno equilibrar dos "e se?" e dos "apesar de.." que nos forjam a cada passo da caminhada, há momentos em que a balança fica tão desigual que, se não tomarmos cuidado, paralisamos, entre a esquina do "e se eu tivesse feito essa escolha" e "apesar de eu ter tomado esse caminho". É exatamente travada nessa esquina que encontramos a protagonista do romance "A biblioteca da meia noite", de Matt Haig.
Nora Seed é uma mulher que, entre o trabalho e a casa, carrega consigo muito mais do que o peso da sacola de compras. Nas costas (ou no coração), Nora traz todos os arrependimentos pelas escolhas feitas e por aquelas que deixou de fazer. Lutos, perdas, rompimentos… Quando enfrentamos um momento difícil na vida, é inevitável nos questionarmos sobre o que nos levou até ali. Teria nossa vida sido diferente se tivéssemos trilhado outros caminhos?
Quando a angústia se torna insuportável, sufocada por tantos "e se?", Nora decide morrer. Na tênue linha que separa a vida da morte, ela se depara com uma Biblioteca onde os relógios sempre marcam meia noite e as prateleiras estão repletas de livros que contam infinitas outras histórias da própria vida: um livro para cada escolha feita e para cada possibilidade de caminho.
E se, de repente, você pudesse viver outras vidas também suas? E se, de repente, você pudesse experimentar como seria se tivesse se casado com aquele grande amor, ou, ainda, se tivesse aceitado aquela proposta de emprego em outro estado? Essa é a possibilidade descortinada diante de Nora nesta biblioteca. Guiada por todos os seus arrependimentos e dores, ela decide experimentar cada uma das vidas não vividas, cada um dos caminhos não tomados.
Entre uma viagem e outra, a consciência de quem era e a consciência de quem poderia ter sido vêm à tona permeando as partidas de xadrez, travadas com a bibliotecária de sua infância (que, magicamente, é a guardiã dessa outra biblioteca), e regadas com diálogos lúcidos demais para não colocarem nossos próprios arrependimentos em xeque.
Será que teríamos sido mais felizes se tivéssemos tomado outro caminho? Nossa essência permaneceria a mesma se as opções escolhidas fossem outras? Nossos arrependimentos dessa versão são mais leves ou mais pesados do que das outras histórias presente em outros livros de nossa (não)vida? As aventuras de Nora Seed nas diversas possibilidades de histórias de si podem nos proporcionar bons momentos no divã de nossa consciência para debates sobre as diversas possibilidades de histórias de nós.
Os arrependimentos que carregamos são por escolhas nossas? De quem é nosso projeto de vida? Caminhamos até aqui porque desejamos ou porque vivemos uma vida inventada por outro, na qual somos apenas coadjuvantes.?
Entre a possibilidade de estar casada, ser dona de uma cervejaria ou ser glaciologista em trabalho de campo, as vidas (não) vividas por Nora Seeds nos conduzem por caminhos sinuosos, alegres, doloridos e fugazes e nos mostram o que há de mais humano na literatura: a capacidade de nos fazer compreender, através do drama do outro, o nosso próprio drama. A isso, Aristóteles chamava de catarse.
A obra de Matt Haig, lindamente desenhada em metáforas de livros, bibliotecas e partidas de xadrez, nos traz muitos momentos reflexivos e pode tocar em feridas que não sabemos abertas. Vale a pena enfrentar as dores, se surgirem, e seguir até a leitura final. Nem sempre encontramos um pote de arco-íris, mas às vezes as descobertas que nos aguardam na trajetória fazem cada suspiro (ou lágrima) valer a pena.
A esquerda, a primeira edição do livro publicada pela TAG experiências literárias, em julho de 2021.A segunda imagem é a edição oficial da Bertrand Brasil, selo da Editora Record.
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