Autoria de Camila Dalla Pozza Pereira, professora corretora do Ensino Fundamental, formada em Letras: Português e mestra em Linguística Aplicada pela Unicamp.
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento (MG), em 1914, numa comunidade rural, fruto de um romance entre sua mãe e um homem casado, ambos analfabetos. Por ser filha bastarda e negra, sofreu preconceito desde criança. Aos sete anos, Carolina Maria começou a estudar, mas frequentou a escola por apenas dois anos; portanto, apenas aprendeu a ler, a escrever e a fazer contas básicas.
Com o falecimento da mãe em 1937, Carolina Maria, aos 23 anos, viajou sozinha para a cidade de São Paulo onde se estabeleceu na favela do Canindé, na margem esquerda do rio Tietê, zona norte. Lá, começou a trabalhar como empregada doméstica, lavadeira, passadeira e catadora de papel e papelão. Na casa de um médico onde trabalhava, em que tinha uma biblioteca, Carolina Maria tinha a permissão do patrão para ler seus livros nos momentos de descanso.
Na vida particular, teve três filhos: Vera Eunice de Jesus Lima, João José de Jesus (já falecido) e José Carlos de Jesus. Cada filho é de um pai diferente e Carolina Maria não quis se casar com nenhum deles nem com mais ninguém, pois temia ser tolhida pelo machismo de fazer o que mais amava: ler e escrever.
O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, o homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal. (JESUS, 2014 [1960], p.49)
Na favela do Canindé, com sobras de materiais de construção que catou nas ruas, Carolina Maria construiu, com as próprias mãos, a sua casa. A mulher escrevia em papéis e cadernos que também encontrava nas ruas de São Paulo e tinha alguns livros em casa que achava da mesma forma.
Em 1958, aos 44, Carolina Maria foi “descoberta” pelo repórter Audálio Dantas, do extinto Folha da Noite, que estava encarregado de escrever uma reportagem sobre a favela que crescia às margens do rio Tietê, no bairro do Canindé. Naquele lugar insalubre (sem energia elétrica, água encanada, esgoto e asfalto) e cruel, sem nenhuma área de lazer para a comunidade, especialmente para as crianças, Audálio conheceu Carolina Maria e seus anotações memorialísticas que vieram a ser, em 1960, Quarto de Despejo – diário de uma favelada.
No mesmo ano de 1958, o jornalista publicou uma matéria com trechos do diário da autora e, no ano seguinte, o mesmo texto foi publicado na revista O Cruzeiro. Em agosto de 1960, por fim, os vinte cadernos que continham o dia a dia de Carolina Maria e de seus filhos e vizinhos foram publicados em formato de livro, cujo editor foi o próprio Audálio. Segundo ele, na época, optou-se por mexer na pontuação do texto, assim como em algumas palavras cuja escrita poderia levar à incompreensão da leitura. Hoje, já há edições do diário que respeitam fielmente a linguagem da autora, mesmo que isso vá ao contrário do que prega a norma culta da Língua Portuguesa, pois traduz, de maneira realista, a forma como Carolina Maria se expressava.
Quarto de Despejo – diário de uma favelada vendeu mais de um milhão de exemplares (vale ressaltar, antes da globalização) e a 1ª tiragem, de dez mil exemplares, foi vendida em uma semana, um verdadeiro fenômeno para a época e para quem era a autora. A obra completa de Carolina Maria foi traduzida para catorze idiomas e foi vendida em mais de quarenta países; nos EUA, por exemplo, seus livros fizeram um enorme sucesso.
Em vida, a autora publicou cinco livros e ainda há os póstumos. Hoje se sabe que Carolina Maria escreveu por volta de cinco mil páginas, entre elas: um diário, seis romances, cem poemas, quatro peças teatrais, doze sambas-enredos, sessenta contos e letras de músicas, incluindo o disco homônimo ao seu livro mais famoso: Quarto de Despejo – diário de uma favelada. Sua bibliografia publicada é a seguinte:
Quarto de Despejo – diário de uma favelada (1960);
Casa de Alvenaria (1961);
Provérbios e Pedaços da Fome (1963);
Diário de Bitita (1977).
Pedaços da Fome foi publicado de maneira independente, pois Carolina Maria foi ludibriada pelas editoras. Além de seus textos terem sido extremamente “mexidos” (podemos ver, nesta questão, um claro exemplo de preconceito linguístico), os editores abusaram da ingenuidade e da ignorância da autora no ramo para não a pagarem, por exemplo, cerca de 150 mil dólares pelas suas vendas nos EUA. Ao todo, ela deixou de ganhar mais da metade do que poderia ter ganho.
Não é à toa que Carolina Maria morreu pobre em 1977, em São Paulo, um mês antes de completar 63 anos de idade, de insuficiência respiratória. O máximo que fez com o dinheiro que ganhou foi comprar uma casa num bairro que, segundo ela, a lembrava da favela do Canindé.
Temos, portanto, uma vida e uma obra que sofreram um processo de apagamento pelo cânone literário brasileiro e, consequentemente e infelizmente, pela educação básica e universitária, que só pode ser explicado pela sociedade estruturalmente racista e machista que é a brasileira, visto que se trata de uma mulher negra e periférica.
Só no ano de 2019 que Quarto de Despejo – diário de uma favelada, entrou para a lista de livros obrigatórios de um dos maiores e mais importantes vestibulares do país, o da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), na categoria diário. Com a pandemia do Covid-19, a Comvest (Comissão Permanente para o Vestibular) alterou a lista de leitura obrigatória, mas manteve o livro de Carolina Maria.
Quarto de Despejo – diário de uma favelada é uma obra que trata da rotina da autora, de sua família e de seus vizinhos (o que criou, aliás, uma espécie de represália por parte da comunidade contra Carolina Maria, por ela ter citado nomes e acontecimentos sem permissão) na favela do Canindé. Tratam-se de vivências sociais e histórias em família e em grupo, como por exemplo, seu desespero pela sua fome, mas principalmente pela de seus filhos; sua solidão como mulher negra, pobre e mãe solo; violência doméstica sofrida pelas vizinhas e tema de uma de suas músicas mais conhecidas, Ra-ré-ri-ró-rua!.
Ra-ré-ri-ró-rua!
Você vai embora
Que esta casa não é sua
(...)
Andas dizendo que eu sou ingrata
Casaste, mas já se arrependeu
Mas é você quem me maltrata
E a infeliz nessa casa sou eu
(JESUS, 1961)
Além disso, ao ler Quarto de Despejo – diário de uma favelada, podemos ter uma lição de como ocorreu o processo de favelização da cidade de São Paulo e analisar sua geografia e urbanística, o que pode gerar um belo trabalho interdisciplinar entre História, Geografia, Literatura e Língua Portuguesa.
A Sociologia também pode desenvolver um ótimo trabalho com esse livro, já que outra análise que pode ser gerada por meio desta leitura é a da luta de classes, já que Carolina Maria opõe opressor e oprimido e fala do oprimido que, assim que tem chances, quer se tornar opressor. A autora também estabelece diferenças entre o favelado e o operário.
Além dessa questão, Carolina Maria também aborda, e muito, a despolitização dos pobres por meio da fome, já que esta tira a humanidade das pessoas, o que impede, juntamente à falta de acesso às escolas, a politização dos habitantes das favelas. Apesar disso, a autora se mostra informada acerca de política e produz várias críticas:
Os políticos só aparecem aqui nas epocas eleitoraes. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. Ele era tão agradavel. Tomava nosso café, bebia nas nossas xícaras. Ele nos dirigia as suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Camara dos Deputados não criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais...
... Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos. (JESUS, 2014 [1960], p. 32).
Quarto de Despejo – diário de uma favelada mostra-se uma obra atemporal e ainda, infelizmente, atual, pois ainda vivemos em uma sociedade estruturalmente racista e machista que discrimina os pobres e os moradores das favelas e comunidades e que ainda trata as empregadas domésticas, as babás e todos os trabalhadores domésticos como objetos.
Basta ver o filme Que horas ela volta? de 2015, dirigido por Anna Muylaert no qual a porta entre a sala e a cozinha da casa onde Val (Regina Casé) trabalha é uma espécie de fronteira entre dois mundos: o dos patrões e o dos empregados. Basta também ler, de Preta Rara, ex-empregada doméstica, rapper e historiadora, o livro Eu, empregada doméstica - a senzala moderna é o quartinho da empregada (2019), no qual a autora afirma que o trabalho doméstico, no Brasil, é hereditário. No podcast, 451 MHz , a revista literária 451 aborda o assunto pautado no livro de Carolina Maria de Jesus através de um bate-papo entre Anna Muylaert e Preta Rara.
Carolina Maria afirmava que escrevia para não esquecer e o que temos de reverter é o esquecimento e apagamento propositais de tantas histórias do povo negro, da mulher negra e da periferia desse país.
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Referências Bibliográficas:
ASSIS, Mariana Santos; VERRANGIA, Cibele; NILDA, Dinha Mª. Carolina Maria de Jesus em verso, prosa e canção. Disponível em https://www.facebook.com/folhetinsmodernos/videos/276731987105034. Acesso em 02/09/2020.
JESUS, Carolina Mª. de. Quarto de Despejo - diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014. 10. ed.
SANTOS, Marcelo de Franceschi. A reportagem que revelou Carolina Maria de Jesus ao Brasil. Disponível em https://mdfranceschi.wordpress.com/2017/12/22/a-reportagem-que-revelou-carolina-maria-de-jesus-ao-brasil/. Acesso em 14/09/2020.
RARA, Preta. Eu, empregada doméstica – a senzala moderna é o quartinho da empregada. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2019.
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