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  • Larissa Basso

Quando já não mais nos enxergamos

Atualizado: 22 de abr. de 2021

Autoria de Larissa Basso, professora do Ensino Fundamental, licenciada em Letras, com habilitação em português, inglês pela Universidade de Sorocaba-UNISO. Mestranda em linguística aplicada e estudos da linguagem pela PUC/SP.



Machado de Assis, um dos maiores nomes da literatura brasileira, nasceu no Rio de Janeiro em 1839 e, durante toda sua trajetória de vida, nos entregou obras únicas, que nos instigam à reflexão. Além de escritor de romances realistas e transpondo Capitu e Bentinho, Machado tem uma presença simbólica, também, na produção de contos, fato conhecido por poucos, mas que marca bastante a vida literária do autor. Entre esses, “O espelho” é quase como uma leitura obrigatória, não só por ser um clássico, mas também por ser uma obra que nos faz repensar nossa individualidade e o que nos define, pautas tão importantes quanto esquecidas nos dias de hoje. O leitor que ainda não conhece o fantástico trabalho de Machado de Assis pode encontrar nesse conto uma ótima porta de entrada ao mundo machadiano, explorando, ao mesmo tempo, o autor e a si mesmo.

Jacobina, o personagem principal da obra, conta a um grupo de amigos sua teoria sobre as diferentes almas que o ser humano tem, ao longo da vida, dentro e fora do corpo. A alma de fora tem estreito vínculo afetivo com seu dono e pode mudar sempre, “de natureza e de estado”, passando a incorporar diferentes coisas conforme o estilo de vida de quem a possui:


Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis (ASSIS, 1994).

O personagem nos conta sobre a importância da alma exterior: muitas vezes, se a perdemos, perdemos também a alma interior, perdemos a nós mesmos. Sendo assim, a alma exterior é algo importantíssimo à nossa existência, e merece, então, profunda atenção. Mas como alguém define o que é sua alma exterior? Como escolher uma alma exterior que nos traga alegria e satisfação? E será que podemos escolher?

Ao longo da vida, com a nossa personalidade sendo emoldurada por diferentes aspectos, cada sujeito em particular define sua própria alma exterior. No caso de Jacobina, o rapaz que faz o relato, a sua alma exterior era uma farda. No conto, o personagem tem agora entre seus quarenta e cinquenta anos e narra o fato acontecido aos seus vinte e cinco, ocasião na qual foi nomeado alferes da Guarda Nacional, cargo que hoje seria uma espécie de tenente. Motivo de orgulho para toda a família, que era pobre, a nova posição do filho da casa foi contemplada por todos como uma conquista incrível, e o jovem era agora chamado apenas pelo título, identidade que adquiriu com a nova posição: não era mais Joãozinho, como antes; agora era “senhor alferes”.


Já podemos imaginar que esse título foi recebido pelo jovem de vinte e cinco anos com tamanha honra. Rapidamente a farda se tornou sua alma exterior, personificando sua nova posição. Como Jacobina nos diz, “O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas [homem e alferes] equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade” (ASSIS, 1994). E assim, a alma exterior, que antes para ele era o sol, o ar, a natureza e os olhares das moças, agora passou a ser a farda. Sua posição na Guarda Nacional era a coisa mais importante de sua existência e seu uniforme resumia isso.

Aconteceu que nosso personagem, por ocasião do destino, precisou partir para longe de casa e, após alguns dias na companhia de parentes que o bajulavam, ficou extremamente só. Todos haviam saído, por diferentes motivos, e agora o Jacobina estava sozinho. Não restou ninguém para chamá-lo de alferes, ninguém para lembrar-lhe de sua posição. Passaram-se oito dias e, sendo consumido pela solidão, ele entra em uma desavença consigo mesmo ao se olhar no espelho. Não se reconhece mais. Não vê o mesmo de antes, fica recolhido e amedrontado. Mesmo o espelho mostrando todos os seus traços, sua face, suas linhas, ele não se vê no reflexo.

Sem perspectiva, o rapaz confuso e em conflito consigo mesmo veste a farda de alferes e se olha novamente no espelho. Agora sim! Ali estava ele, Jacobina, o alferes, o “senhor alferes”. A farda era sua alma exterior. Ele se reconhecia completo quando a vestia.

Machado de Assis cria oportunidade para tecermos várias questões a respeito da existência humana. Quem está comandando a nossa vida: nossa alma externa ou a nossa alma interna? Precisamos de coisas exteriores a nós para nos enxergamos por completo no espelho? Deixamos de nos reconhecer quando já não existe mais ninguém ao nosso redor para falar quem somos?

Essas e outras perguntas surgem conforme acompanhamos a história do personagem. E é aí que mora a genialidade do escritor brasileiro: a obra não para em si, as palavras transpassam o físico do livro e atingem o profundo de nosso ser, nos levando a inúmeras questões que nem sabíamos que existiam dentro de nós.

É uma leitura transformadora, aplicável, também, à forma que vivemos hoje, em uma conjuntura de redes sociais e necessidade de aprovação alheia. Nos “enxergamos no espelho” sem os likes e os comentários laudatórios? Pergunte-se: eu vivo com uma farda de alferes? Se sim, qual é ela? Ainda possuo em mim minha alma interior ou ela foi completamente tomada pela exterior? Será que pautamos nossa existência no que dizem a nosso respeito e que no que só “vestimos” para os outros?

Como afirma o professor Domício Proença Filho, os contos de Machado de Assis trazem a mesma identidade criadora dos romances, mas agora com enfoque em detalhes do nosso cotidiano em sociedade.

Com tanta tecnologia e informação, reflexões como essas perdem espaço nas nossas vidas, e, muitas vezes, nossa individualidade é perdida com elas. A leitura de O espelho é como uma resposta ao pedido de socorro de uma sociedade absorvida por sua alma externa. A leitura de um conto de Machado de Assis nos faz dar uma olhada para os lados e para trás, como se tivesse acabado de ser escrito.


Referências:


ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. GRUPO EDITORIAL GLOBAL. Machado de Assis, atual desde sempre. 4min57s. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=LsJERgvE3Xw&t=11s >. Acesso em 09 de março de 2021.


MACHADO de Assis, um contista genial. Revista Prosa, Verso e Arte, Rio de Janeiro. Disponível em: < https://www.revistaprosaversoearte.com/machado-de-assis-um-contista-genial/ >. Acesso em 05 de março de 2021.

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