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Ana Luiza Marques Bastos

Para ler, imaginar, refletir e sentir, por Ana Bastos

Resenha escrita pela Profa. Dra. Ana Luiza Marques Bastos, Bacharel em História pela UERJ com mestrado e doutorado em História Social da Cultura pela PUC-RJ, e estágio de Pós-Doutorado junto à Cátedra Jaime Cortesão/FFLCH/USP. Ana é professora da disciplina de História no Ensino Fundamental II do Colégio Uirapuru e neste texto, ela faz uma leitura reflexiva e sensível sobre o livro “Um defeito de cor” escrito por Ana Maria Gonçalves e publicado pela editora Record.

A autora, Ana Maria Gonçalves e seu livro Um defeito de cor. Disponível em: https://soulart.org/artes/um-defeito-de-cor


O livro de Ana Maria Gonçalves imagina a heroína negra Luísa Mahin* a narrar suas memórias para o filho perdido, o poeta e advogado abolicionista Luís Gama. De fato, a autora fez uma inversão na memória epistolar registrada na história da literatura brasileira. Embora o nome de Luís Gama jamais tenha sido dito no livro, o artifício literário foi apresentar a mãe escrevendo para seu filho, algo inverso ao que aconteceu, já que muitas das informações que temos sobre Luísa Mahin foram escritas em cartas pelo filho (GOMES et al., 2021, p. 345). Era então de se esperar a leitura de uma biografia histórica, acompanhando a documentação sobre o envolvimento de Luísa Mahin em revoltas de escravizados e libertos baianos na década de 1830. De início, você até quer que assim seja, mas logo é possível sentir que Um defeito de cor** é a epopeia de todo um povo, um pouco histórica, outro tanto ficcional, alegorizada na longa vida da africana Kehinde, sequestrada na África por volta dos 7 anos de idade e escravizada na Bahia no início do século XIX. A longevidade de Kehinde-Luísa, a força e a saúde do seu corpo de mulher negra, mãe, escrava de ganho, quituteira e quitandeira, trabalhadora e negociante, defensora dos e das camaradas de luta pela sobrevivência e a liberdade, filha de Oxum, talvez retornada a África, talvez criadora do samba de crioula no Maranhão, honra por metonímia a vida de milhões de africanos e africanas diaspóricos.

O livro está estruturado em 10 capítulos e um provérbio africano serve não apenas de epígrafe para cada qual, mas como significante das vidas ali narradas. Ana Maria Gonçalves dá voz a mulheres e homens escravizados e libertos, deixando-os falar das dores, das amizades, da religiosidade, do trabalho, da esperança, das injustiças, e sobretudo, das inúmeras formas de violência contra seus corpos. Por meio da narrativa memorialista que se assemelha à escrita de cartas, o leitor vai se tornando íntimo de todo um povo. É importante esclarecer que isso acontece não porque a narradora romântica Kehinde-Luísa cumpra estereótipos de caráter e conduta moral, mas porque nos vemos inúmeras vezes vivendo alegrias e tristezas, conquistas e fracassos, que poderiam ter sido vividos por qualquer africano ou africana escravizado na América. No entanto, vale lembrar que a estadunidense Angela Davis e a brasileira Lélia Gonzalez, ativistas da luta antirracista e feministas, destacam a importância da mulher negra na luta antiescravagista, em grande parte porque seus corpos foram reificados através da domesticação sexual imposta por senhores brancos e senhoras brancas (DAVIS, 2016, pp. 95 e segs.; GONZALEZ, 2020, pp. 75 e segs.). Em Um defeito de cor, o sinhô e a sinhá projetam a libido sobre os corpos das negras e dos negros por meio da violência física, como estupros e mutilações, e também simbólica, quando impedem que as mães negras amamentem seus filhos para que sirvam de ama de leite aos bebês brancos*** ou quando tomam para si e vendem as crianças mestiças mesmo quando ingênuos (filhos ou filhas de escravizada alforriada ou nascidos após a Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, conhecida por Lei do Ventre Livre).

O naturalismo orienta a composição tropológica realista e factual do livro, o que, por vezes, faz a leitura ficar arrastada ao longo da descrição excessiva de ambientes urbanos ou naturais, de características fisionômicas e comportamentais dos personagens e de situações particulares ou coletivas. Não podemos deixar de relacionar tudo isso às exigências de posicionamento político e ético impostas pelo tema do livro, afinal, o objeto da narrativa é a escravização de africanos e as permanências estruturais de tal processo histórico no Brasil por meio de práticas de racismo. Lembremo-nos de que o naturalismo de meados do século XIX, que, aliás, é o período histórico de Luísa Mahin e Luís Gama, respondia às mudanças sociais no mundo do trabalho e ao controle definitivo do sistema político e do Estado pela burguesia industrial na Europa e nos Estados Unidos, o que garantiu o advento da Segunda Revolução Industrial e a hegemonia do discurso científico e tecnológico que, posteriormente, foi usado para segregar e hierarquizar grupos sociais e povos mundo afora. Émile Zola não escreveu sobre mineradores por acaso, mesmo porque, para os naturalistas, tratava-se de conhecer e descrever para intervir e transformar a sociedade conforme uma orientação republicana, democrática e revolucionária. Ana Maria Gonçalves, sem anacronismos tolos, responsabiliza-se pela "exigência de absoluta honestidade na descrição dos fatos" a fim de ver garantida a "objetividade e solidariedade social" típicas do naturalismo na literatura (HAUSER, 2003, p. 792 e segs).

Um exemplo disso é a descrição da casa grande feita pela personagem Kehinde-Luísa, que narra minuciosamente a riqueza dos senhores de escravos em móveis, tapetes, louças e espelhos. Essa mesma força descritiva promove uma valiosíssima mimesis factual, por exemplo, do porão do tumbeiro, da senzala e dos perigos do trabalho no engenho de açúcar, da casa de cômodos no Rio de Janeiro e seus personagens, da subida de Santos até São Paulo e da própria cidade de São Paulo, da cidade e o porto de Ajudá na África e da vida social dos retornados africanos, entre tantas outras. Todavia, algumas vezes, acontece algo contrário a tudo isso, há um cerceamento flagrante da descrição, à semelhança de um interdito que sinaliza para a impossibilidade de se imaginar a experiência de outros e outras em tempos quaisquer. Podemos sentir assim, sobretudo, quando se faz menção aos rituais religiosos aos quais Kehinde-Luísa estava ligada pela ancestralidade. Aliás, uma das narrativas mais lindas do livro é quando sua avó lhe transmite ensinamentos sobre os voduns, pouco antes de morrer, quando ambas estavam no porão do tumbeiro. A narrativa da travessia, os cheiros, a morte, a fome, o desconhecimento sobre o que de fato estava por vir, se traduz, enfim, num autêntico ato de humanização dos acontecimentos históricos, algo que só a literatura é capaz de criar porque só nela a imaginação referencia as próprias limitações.

Os fatos que levam Kehinde-Luísa a ser escravizada se impõem com ares de tragicidade. Podemos especular que a intenção da autora é mesmo suspender a possibilidade de se ter qualquer explicação simplista para a escravização de africanos na América. Contudo, duas teses complementares estão presentes no livro: a econômica e a cultural. O tráfico negreiro estava integrado ao sistema comercial atlântico, gerando lucros para a burguesia mercantil europeia e seus sócios na América e na África, a partir da troca de mercadorias manufaturadas e da produção de matérias-primas e gêneros tropicais. E isso é visível no livro, por exemplo, tanto por intermédio do personagem Chachá****, rico comerciante de escravos, com estreitas relações com o rei de Daomé quanto nos diferentes lugares pelos quais Kehinde-Luísa procura o filho vendido quer em Salvador, no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Se, por um lado, a exploração colonial mercantilista necessitou em geral do trabalho compulsório dos povos originários da América e da África, para o plantio dos gêneros agrícolas e a extração de minerais, por outro, não se pode negar a lucratividade do comércio transatlântico de escravizados como inédito modo de acumulação de capitais pela burguesia europeia (NOVAIS, 2005, p. 105).

Ademais, os corpos negros carregavam saberes de civilizações centenárias. Não podemos negligenciar o fato de que os africanos e as africanas trazidos para trabalhar na América conheciam técnicas de cultivo mais complexas, de extração mineral e de metalurgia, além de construção civil (SCHWARTZ, Stuart, 2018, p. 219; podcast Vidas Negras, publicado jun-09-21). A importância dos negros nas minas na extração de ouro é mencionada por Charles Boxer, que chama de dom o conhecimento prático passado por gerações de africanos na extração de minérios e na metalurgia. Os escravizados africanos eram responsáveis pela fundição de pás, enxadas, machados entre outros objetos de ferro, inclusive utensílios domésticos e rituais. (LEITE, in ARAÚJO, 2013, pp. 75 e segs.) Em Um defeito de cor, há vários relatos sobre negros ferreiros, carpinteiros, construtores, comerciantes, contabilistas, professores, além das negras quituteiras, lavadeiras, benzedeiras, manupuladoras de ervas, que inúmeras vezes vendiam seus serviços para garantir o ganho que sustentava muitas sinhás urbanas. Kehinde-Luísa conta que antes de ser escrava de ganho, foi alugada para uma família de ingleses, em cuja casa conheceu outros escravizados que tinham qualificação e letramento, como o islamizado Fatumbi que a alfabetizou e a integrou no grupo que organizou a Revolta dos Malês.

Aliás, o letramento entre os escravizados urbanos, muito associado aos grupos de africanos islâmicos, deve ser entendido como ato de resistência, visto que era proibida a matrícula de escravizados em escolas. Kehinde-Luísa foi alfabetizada junto com a sinhazinha por vontade sua e do professor Fatumbi, hauçá que cuidava da contabilidade do engenho de açúcar. Ao longo da narrativa há inúmeras referências à tensão entre ser e não ser alfabetizado no conjunto dos escravizados e dos libertos. Destaco a beleza de três situações. A escola para negros órfãos, organizada por uma liberta e um padre, na qual Fatumbi e a própria Kehinde-Luísa lecionaram. O momento em que Kehinde-Luísa encontra o lugar no qual o filho vendido trabalhava e ouve de um dos hóspedes que o ensinou a ler, e que isso o fez buscar os documentos que provavam sua condição de nascido livre. As cenas da mãe ensinando aos filhos Banjokô e Omotunde as primeiras letras no quintal de casa, às quais podemos relacionar os seguintes versos de Luís Gama

Era mui bela e formosa,
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia rainha,
E no Brasil pobre escrava!
Oh, que saudades que eu tenho
Dos seus mimosos carinhos,
Quando c'os tenros filhinhos
Ela sorrindo brincava
Minha Mãe (1861)*****



Bem... Mas voltemos ao início do livro, ao conjunto de violências que levaram Kehinde-Luísa a ser "no Brasil pobre escrava!". A narrativa começa em Savalu (cerca de 220 km da costa e do porto de Ajudá ou Uidá, na atual República do Benin)******, onde a família sofre a primeira ação violenta, na qual sua mãe e seu irmão mais novo são assassinados, e que obriga a avó com as netas gêmeas a migrarem para o litoral. Na cidade de Uidá, Kehinde-Luísa e a irmã gêmea foram avisadas de que os brancos ricos, que moravam do outro lado da cidade, vendiam gente, mas se sentiram atraídas pela chegada de um navio no forte português (Fortaleza de São João de Ajudá) e lá assistiram a cenas impressionantes: caixas e baús sendo carregados e brancos sendo reverenciados de joelhos pelos moradores locais. Havia música, cantores, bufões e muitos escravos. Tudo isso atraiu as gêmeas, que chegaram bem próximo do cortejo e foram avistadas por um branco que as mandou capturar e levar para o armazém, no qual já estavam algumas mulheres e alguns homens, mas nenhuma criança.

Por que isso aconteceu? Por que ninguém fez nada para as proteger? Por quê? Não há resposta porque nada justifica a barbárie. A história deve levantar os dados, estabelecer os fatos e evidenciar as processos culturais que levaram a genocídios, mas os limites da razão, da ciência, da civilização precisam ser deixados a olho nu pelas artes, como, por exemplo, a literatura, para que todos e todas sintam os riscos de nos esquecermos de que a humanidade só existe no coletivo de seres humanos.

O livro Um defeito de cor é atravessado por várias práticas de resistência e de luta pela sobrevivência e busca da liberdade, entre as quais, a religiosidade e a camaradagem. Desde o início, Kehinde-Luísa reverencia sua ancestralidade africana por meio da religiosidade da avó, que nos é apresentada como vodunsis (sacerdotisa) da corte da rainha Nã Agontimé.******* O que cresce ao longo do livro como notícias históricas sobre a importância das comunidades que se encontram para cultuar orixás ou voduns. São lugares nos quais as pessoas escravizadas e libertas (por carta ou fuga) se encontram para proteger e perpetuar os saberes trazidos da África. O mais maravilhoso dessas narrativas é o quanto podemos aprender sobre um mundo simbólico que, embora perseguido e silenciado, está por aqui e pode nos ensinar outros modos de conhecer e conviver.

O ato de Kehinde-Luísa se negar a receber o batismo e de manter-se fiel às práticas de religiosidade de sua avó, vai sendo reiterado em aproximações em geral ocultas ou escondidas. É assim, ao levar os filhos para a cerimônia do nome, na primeira vez, escondido da sinhá, que a pune quando descobre, na segunda, mediante a ausência do pai branco do filho vendido. Mas também quando precisa se esconder, devido ao envolvimento com os levantes de escravizados na cidade de Salvador. Nesse caso, podemos entender o processo como sua jornada para a iniciação religiosa. Tudo começa quando Kehinde-Luísa vai a um conjunto de casebres no qual as ialorixás Mãe Assunta e Mãezinha conservavam os rituais que aprenderam com as avós na África. A partir daí, ela segue até o Maranhão para se encontrar com Nã Agontimé, na já conhecida Casa das Minas, onde recebe novos ensinamentos sobre os rituais vodum. Depois, segue para o interior da Bahia e, na Roça de Sinhá Romana, vive o ritual de iniciação em seu próprio vodum. A jornada de Kehinde-Luísa nos leva à consciência do quanto somos ignorantes sobre a civilização brasileira, como as rezas, os ebós, os terreiros, os orixás, as cores, as cantigas, os sonhos, os balangandãs, os tecidos, as comidas, as ervas, fazem parte do que somos como povo mestiço. A epígrafe-provérbio deste capítulo exemplifica o jogo metonímico que figura nosso tão necessário movimento de descoberta do que de fato nos cultiva: Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens.

Embora esse passado esteja integrado à história oficial, porque Ana Maria Gonçalves referencia acontecimentos da história do Brasil: Independência, revoltas de escravizados e de brancos, leis antiescravistas, Golpe da Maioridade, eleições, entre tantos outros. Precisa ser, sobretudo, o reconhecimento dos valores da camaradagem. Kehinde-Luísa conversa com muitos personagens, tem alguns amantes, mas tudo isso é secundarizado pela camaradagem. A começar por Esméria, Sebastião, Hilário, Tico e Fatumbi, que formam um grupo de pessoas que se ajudam todo o tempo das mais diversas maneiras. Os recursos particulares sempre são mobilizados por Kehinde-Luísa a favor da coletividade. Tanto assim, que sua casa chega a ser um ponto de parada e alimentação para escravos e escravas fugidos, e, posteriormente, para reuniões dos líderes malês. No trabalho e na luta pela liberdade apenas o coletivo importa. Posteriormente, os grupos provisórios, como os moradores da casa de cômodos no Rio de Janeiro ou o casal de brancos sinhazinha e seu marido e filhas, também integram uma rede de auxílios e trocas de favores. Já como retornada, entristecida por não ter conseguido encontrar o filho vendido como escravo, Kehinde-Luísa constrói uma última e forte rede de relações junto aos retornados africanos. Tais relações de fraternidade e negócios não garantem a felicidade, nem a liberdade, mas nutrem a esperança de estar construindo algo melhor que será herdado por outros e outras.

Os dois últimos capítulos do livro são dedicados à sociedade dos retornados, um grupo de brasileiros e africanos libertos que voltaram para a África e se estabeleceram na região do porto de Ajudá (República do Benin) e em Lagos (na atual Nigéria). O retorno de Kehinde-Luísa para a África faz referência tanto aos registros de Luís Gama, que afirma ter ficado sabendo que, junto com outros envolvidos na Revolta dos Malês, sua mãe foi expulsa do Brasil, quanto à própria historiografia sobre os retornados. Há dois fluxos importantes de retornados que são reverenciados pelo livro. O primeiro, de fins do século XVIII e início do XIX, cujo principal expoente foi o comerciante baiano Francisco Félix de Sousa, o Chachá, ao qual foi associada a escravização de Kehinde-Luísa e, depois, os meios necessários para ela se estabelecer como comerciante na África. O segundo, de meados do século XIX, figurado pela personagem Kehinde-Luísa, que diz respeito aos deportados por envolvimento em revoltas no Brasil (BRITO, 2018, pp. 384 e segs).

Na África, Kehinde-Luísa reconstrói sua rede de camaradagem e religiosidade a partir da família que a havia acolhido junto com a avó e a irmã, antes da escravização, e de um novo conjunto de amigos também retornados, do seu último amante e pai de seus filhos gêmeos, e, por fim, dos laços que deixou no Brasil (Tico e sinhazinha). A historiografia sobre o tema mostra que a vida econômica e social dos retornados estava estruturada no comércio de diversas mercadorias entre a costa da África e o Brasil, e que eles tinham uma composição étnica bastante diversificada, porém se identificavam como coletividade por meio da manutenção de costumes trazidos da Bahia, como, por exemplo, a festa do Senhor do Bonfim (BRITO, 2018, pp. 384 e segs). Ana Maria Gonçalves nos apresenta, sobretudo, as contradições históricas dos retornados, o enriquecimento com o comércio de escravos, a identidade comunitária mediante a experiência no Brasil como escravizado, a ânsia de manter condutas e costumes que os diferenciasse dos demais africanos por eles vistos como selvagens e atrasados.

Kehinde-Luísa, como retornada, adotou o nome de Luísa Andrade da Silva e se transformou na matriarca de uma rica e influente família da região de Lagos. E nessa condição, ela vai narrar acontecimentos característicos das vivências de seu grupo. Ana Maria Gonçalves, no entanto, impõe à heroína uma barreira moral: Luísa Andrade da Silva não enriqueceu com o tráfico de escravos, ou pelo menos não de modo consciente, pois, afinal, há várias menções às relações de seus sócios com tal comércio. Enfim, seu poder econômico foi enraizado em outras práticas que também enriqueceram as principais famílias de retornados africanos: comércio de fumo, de tabaco, de aguardente, de azeite de dendê, de armas e de objetos para cultos religiosos, assim como, a construção civil. Os imaginados filhos gêmeos de Kehinde-Luísa, como aconteceu historicamente com as famílias enriquecidas de retornados, receberam educação na Europa e voltaram à África para tratar dos negócios da família e da nação.

Como outros africanos e brasileiros, Kehinde-Luísa refez ainda uma outra vez a travessia do Atlântico, na busca de uma última pista para encontrar o filho vendido como escravo. Trazia consigo o baú no qual guardava as relíquias de uma longa vida: objetos e papéis, que foram encontrados por acaso por uma escritora que fazia pesquisas sobre a revolta dos Malês. Porque, conforme a filosofia africana do último provérbio-epígrafe explica: Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje.

 

* A Lei 13.816 de 24/abr/2019 manda que: Art. 1o Inscrevam-se os nomes de Dandara dos Palmares e de Luiza Mahin no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13816.htm Acesso 06/jul/2021. Conforme citado em GOMES et al., 2021, p. 345.

** A expressão "defeito de cor" surgiu nos processos de ordenação clerical, durante o século XVIII no Brasil, com o propósito de preservar a hirarquia social entre brancos e negros nos quadros de sacerdotes. (OLIVEIRA, 2018, p. 44)

*** A criança nascida da escravizada tornada ama de leite, raras vezes podia acompanhar a mãe, em geral, ficava na senzala sendo cuidada por outras mulheres e alimentando-se inapropriadamente. Nas cidades, era comum que tais crianças fossem abandonadas em igrejas e mesmo deixadas para morrer em lugares públicos. Mesmo quando era permitido que a escravizada levasse consigo seu bebê, as possibilidades dela não conseguir alimentá-lo eram reais. (TELLES, Lorena F. da S., 2018, pp. 99 e segs.)

**** Chachá foi o título recebido pelo mulato baiano Francisco Félix de Souza no início do século XIX, cujos descendentes têm influência econômica e política ainda hoje na República do Benim, Nigéria, Togo e Costa do Marfim. (GOMES, 2019, pp. 16-17)

***** GAMA, Luís, Primeiras trovas burlescas de Getulino (1861). Disponível em https://www.escritas.org/pt/t/12179/minha-mae Acesso 05/jul/2021

****** Atualmente, há um monumento chamado Porta do Não Retorno de Ajudá em memória a todos e todas que foram levados compulsoriamente de África. Esse monumento marca um dos 188 portos de partida de escravizados. Estima-se que no porto de Ajudá tenham sido embarcadas mais de 1 milhão de pessoas (crianças e adultos). (GOMES, 2019, p. 18; Banco de dados SLAVE VOYAGES. Disponível em https://www.slavevoyages.org/ Acesso 05/jul/2021)

******* Não existem documentos definitivos quanto à escravização da rainha do Daomé no Maranhão ou em outras províncias do Brasil monárquico. Embora se tenha memória oral, registrada a partir de dona Deni de Tói Lepon, uma das últimas vodunsis do Maranhão, que associa a fundação do núcleo religioso de culto vodun Casa das Minas à africana escravizada Nã Agontimé ou Maria Jesuína. (GOMES et al., 2021, p. 454)


Referências:

ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. São Paulo: Seguinte, 2020.

CHAGAS, Silvania N. Sobreviventes da diáspora: os “brasileiros do Benim” em Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves. Itinerários, Araraquara, n. 46, p. 107-118, jan./jun. 2018, pp. 107-118.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

GOMES, Flávio dos Santos et al. (organizadores). Enciclopédia Negra. São Paulo: Cia das Letras, 2021.

GOMES, Laurentino. Introdução, in Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. vol. 1. Rio de Janeiro: Globo livros, 2019, pp. 15-42.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. (1ª ed. 2006) 25ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2020.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira, in: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, pp. 75-93.

HAUSER, Arnold. Naturalismo e Impressionismo: 2. O Segundo Império, in: História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 786-833.

LEITE, José R. T. As raízes na África negra da siderurgia brasileira, in ARAÚJO, Emanuel (curador). Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013, pp. 74-81.

NOVAIS, Fernando A. A crise do antigo sistema colonial, in: Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006, pp. 57-116.

OLIVEIRA, A. J. M. As habilitações sacerdotais e os padres de cor na América portuguesa: potencialidades de um corpus documental. Acervo - Revista do Arquivo Nacional, v. 31, n. 1, p. 33-48, 2018. Disponível em http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/44854 Acesso 05/jul/2021.

SLAVE VOYAGES, Banco digital de dados das viagens atlânticas integradas à escravização de africanos na América. Disponível em https://www.slavevoyages.org/ Acesso 06/jul/2021.

TELLES, Lorena F. de S. Amas de leite; SCHWARTZ, Stuart. Escravidão indígena e o início da escravidão africana; BRITO, Luciana. Retornados africanos, in GOMES, Flávio dos S. e SCHWARCZ, Lilia M. (organizadores) Dicionário da escravidão e da liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Cia das Letras, 2018, respectivamente, pp. 99-105; pp. 216-222 e pp. 384-391.

VIDAS NEGRAS (podcast), roteiro e apresentação de Tiago ROGERO, produção original Spotify, 2020-21.Disponível emhttps://open.spotify.com/show/0qycUnfp92MidYXzMC8t0WAcesso 06/jul/2021.

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