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Ana Carolina Alecrim Benzoni

O quase fim do mundo.

Texto escrito pela professora Ana Carolina Alecrim Benzoni, professora de Língua Portuguesa e Produção de texto para a 1ª série e Gramática da 3ª série do Ensino Médio. Ana é formada em Letras pela USP e especialista em Teoria e Crítica Literária pela PUC-SP. No texto de hoje, Ana nos presenteia com uma brilhante reflexão sobre o livro O quase fim do mundo, romance de Pepetela, um dos autores africanos de mais destaque, atualmente. Um de seus livros, Mayombe, é leitura obrigatória do vestibular da Fuvest.


Capa do livro "O quase fim do mundo". Fonte: Amazon.

E se, de repente, ao retornar de uma viagem a trabalho, você encontrasse sua cidade completamente vazia?

E se, de repente, você pudesse se servir da melhor adega da cidade, da melhor carne, da melhor boutique de roupas, do melhor carro, sem precisar desembolsar um único centavo por isso?

E se, de repente, você pudesse entrar no banco e pegar tanto dinheiro quanto desejasse, ao ponto de encher um porta-malas, sem que ninguém o perseguisse?

E se, de repente, você se descobrisse sozinho no mundo?

Essas são as primeiras situações com que se depara Simba Ukolo, a personagem principal de O quase fim do mundo, romance de Pepetela, lançado no Brasil em 2019.

Calpe – cidade fictícia localizada na África, próxima ao Kilimanjaro – é o palco do desenrolar de uma história sobre o fim do mundo que em nada se parece com os filmes apocalípticos que costuma(va)mos ver nas telas dos cinemas, embalados por muita pipoca e pouca reflexão.

Num dia comum, voltando do trabalho, Simba Ukolo é surpreendido por um clarão no céu. Sem saber qual a causa desse fenômeno, ele se dirige rapidamente a Calpe e encontra a sua cidade vazia: carros parados no meio das ruas, roupas jogadas nas calçadas, relógios e bolsas caídos no chão, portas das casas e das lojas abertas, e nenhum ser humano além dele.

Atônito, Simba constata que sua família, seus vizinhos e até mesmo os animais da redondeza sumiram no misterioso incidente. Tomado por um misto de confusão, desesperança, medo e excitação, Ukolo caminha pela cidade à procura de outras pessoas enquanto aproveita a oportunidade para munir-se dos signos que, outrora, lhe confeririam poder: armas e dinheiro.

Mas, de que adiantam armas, se não há outros a combater? De que adianta dinheiro, se não há outros com quem comercializar? De que adianta ter o melhor carro, morar na melhor casa ou, ainda, comer no melhor restaurante se se está sozinho no mundo? É assim que, logo nas primeiras páginas, vemos ruir todos os grandes pilares em cima dos quais fundamentamos nossos valores da Sociedade Ocidental.

Enquanto acompanhamos Simba em sua angústia e em seu ceticismo, encontramos Geni, a segunda sobrevivente que aparece nesta história. Ele, um médico ateu, apegado à ciência e às evidências que a observação é capaz de nos fornecer, reconhece em Geni seu exato oposto: a religiosa fervorosa acredita que não há o que investigar: o sumiço das pessoas e dos animais é resultado da fúria de Deus. Castigo divino como resposta a anos de decadência e pecado. E então, também na beira do fim do mundo, ciência e religião encontram-se em lados opostos, ainda que codependentes, de uma nova realidade que Pepetela vai tecendo diante de nossos olhos, nas páginas desse romance.

A esses dois personagens, pouco a pouco, outros vão se somando: um pescador, uma jovem na flor da idade, um ladrão, um curandeiro, um militar, uma cientista, uma criança...Elas surgem de pequenos diversos cantos da África e chegam a Calpe como peças de xadrez dispostas num tabuleiro. Cada qual trará consigo um olhar específico sobre aquele mundo que não existe mais e escancarará de forma muda a inutilidade daquilo que já foram, um dia, enquanto seres sociais: de que adianta um pescador se não há mais peixes? Qual a validade de uma cientista, se não há mais objeto de pesquisa (chimpanzés, no caso)? Qual a necessidade de se furtar algo, se as casas, os bens, o dinheiro estão à disposição? Como curar alguém das mazelas da infertilidade se não há sobreviventes no mundo? O que defender, se não há nação? Como ser criança ou nutrir as esperanças se não há vislumbre de sociedade à nossa frente?

Com a maestria típica de sua escrita, Pepetela nos conduz, leitores, ao âmago desses personagens ao ceder, por meio da polifonia narrativa, o lugar de narrador a cada um deles. Dessa forma, o livro nos proporciona mergulhos indescritíveis nas dúvidas, anseios, medos e angústias de pessoas tão diferentes e que se veem, de repente, obrigadas a um mesmo propósito: realinharem suas trajetórias de vida em meio a um imenso nada.

Longe do excesso de ação e violência típicos das obras que abordam o final apocalíptico, O quase fim do mundo vai presentear o leitor com diálogos e debates preciosíssimos sobre nossa essência enquanto seres sociais.

No grande jogo de xadrez que se desenrola à nossa frente, vemos serem colocadas em xeque muitas das nossas crenças mais inabaláveis: será a violência uma característica inerente ao ser humano ou uma resposta a uma condição social? Faz sentido a divisão dos seres humanos em tribos ou em raças? Há mesmo uma nação superior à outra? As mulheres têm o direito de escolher não ter filhos diante da iminente extinção de nossa espécie? Somos tão autossuficientes que não precisamos de outros animais? Mudamos nossa índole diante de situações extremas?

Como o grande REI parado no tabuleiro, o leitor assiste ao movimentar das peças à sua frente e se vê obrigado a ponderar e questionar se podemos, de fato, defender os valores que temos defendido há tanto tempo e se estamos construindo nossos alicerces em bases sólidas o suficiente para que fiquem de pé, caso tudo ao redor comece a desabar.

Mais do que um olhar para um futuro apocalíptico, O quase fim do mundo é um convite para que olhemos ao que há de mais etéreo em nossa sociedade e que nos molda, dia a dia, sem que percebamos. Um convite para assistir ao renascer, mais uma vez, no coração da África, da nossa condição humana.

Pepetela, autor do livro "O quase fim do mundo" Fonte: A crítica

Ficha Técnica:

Autor: Pepetela

Título: O quase fim do mundo

Editora: Kapulana (São Paulo)

Páginas:359

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