O prêmio Jabuti é o mais tradicional prêmio brasileiro para a literatura. Criado pela Câmara Brasileira do Livro, ele premia obras que transcendem o literário e alcançam experiências enriquecedoras conferindo aos vencedores o reconhecimento da comunidade leitora do Brasil, como é o caso do livro de hoje: O avesso da pele. Vencedor na categoria Romance Literário, o livro de Jeferson Tenório é original, possui técnica narrativa, um desenvolvimento de enredo e dos personagens, mas acima disso é uma obra atemporal e necessária para entender o processo histórico na formação da sociedade brasileira.
A história foi vista, durante muito tempo, como um conhecimento estático, burocrático, normativo, convertendo suas informações na valorização de um passado heroico e distante, que pouco fornece instrumentos de análise da realidade à qual estamos inseridas. Gostamos, enquanto historiadores formados nos séculos XX e XXI, de pensar que essa visão arcaica não faz mais parte da forma como trabalhamos. A proposta atual é de uma ciência social que utiliza as fontes históricas e os eventos do passado para auxiliar, na verdade, no entendimento das relações do tempo presente. É, portanto, a partir dessa forma de perceber o conhecimento histórico que temos que analisar as datas comemorativas: o que - de fato - significam esses duzentos anos de independência do Brasil?
Nossa emancipação ocorreu sob a liderança do herdeiro do trono português, Pedro de Alcântara, que se tornou Dom Pedro I ao tornar o Brasil um país independente da Coroa Portuguesa, em 7 de setembro de 1822. Pouca coisa mudou internamente: a escravidão foi mantida e as estruturas de poder não sofreram alterações. Os anos se passaram - tivemos a abolição da escravatura em 1888, a Proclamação da República em 1889 e períodos ditatoriais no século XX. Como chegamos ao século XXI?
De todas as respostas que podemos pensar para essa questão, uma é razoavelmente comum entre os historiadores: a construção da nossa nação não se deu a partir da participação popular. A imensa maioria da população participou - e participa - da história brasileira como espectadora, condição que fortalece o populismo e um estranhamento quanto às questões coletivas. O resultado é um país com uma imensa dificuldade em diferenciar o público do privado e que se utiliza constantemente da violência para a resolução de conflitos. Perceber isso - e caminhar por estradas que visem a superação dessas heranças coloniais - é condição necessária para o florescimento de uma democracia verdadeiramente efetiva.
É através desse olhar problematizador - e tão necessário para entender o Brasil - que indico a leitura de "O avesso da pele", de Jeferson Tenório, livro lançado em 2020 e vencedor do Prêmio Jabuti em 2021. A obra retrata a vida de Pedro - o narrador - e seu pai Henrique. Cada capítulo apresenta elementos das personagens, cuja intimidade e história vamos descobrindo através da rememoração de Pedro. A vida de seu pai, um homem negro e professor de escola pública, tem muito a dizer sobre o que é Brasil.
A primeira contribuição se dá a respeito de como nós, professores - mesmo que preenchidos positivamente por momentos de aprendizagem e contentamento - somos soterrados pelo descaso com a educação em nosso país. A melhor forma de explicar é por meio das palavras de Pedro: "Todos acham que, se você está ali, tendo que aturar os desaforos de crianças e adolescentes, é porque você não deu certo na vida. Dar aulas foi o que sobrou para os perdedores. Mas no fim das contas você sabe que não é bem assim. Ou pelo menos queria acreditar nisso." A forma como o livro retrata as angústias, a incompletude e a amorosidade ímpar que encontramos em uma sala de aula é um recado sobre como não se constrói cidadania sem escola.
Entretanto, por mais rica que seja tal faceta do livro, esse não é o tema central. Toda a história se desenrola na negritude do pai e do filho, assim como todos os casos de violência - principalmente policial - resultantes dessa condição. Um dos momentos mais expressivos no livro é exatamente o entendimento do que significa ser negro em um país racista: "Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina o nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes de modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos. Lembro que você fazia um grande esforço em ser entendido por mim. Eu era pequeno e talvez não tenha compreendido bem o que você queria dizer, mas, a julgar pela água no seus olhos, me pareceu importante."
Se a escola é condição para nos construirmos como coletivo, precisamos entender que nossa herança escravocrata racista - que permanece ativa e presente - é aspecto central de nosso processo civilizacional. Ou seja, reconhecer essa estrutura é instrumento de conscientização sobre quais os rumos que tomaremos enquanto nação. O livro de Jeferson Tenório é um lembrete desse passado tão indelével, mas que, ao ser resgatado, traz possibilidade de mudança e, consequentemente, esperança.
E para que mais serviriam as datas, as comemorações, a história? Para que falamos dos 200 anos da independência do Brasil? A resposta passa pelo entendimento dos caminhos que nos trouxeram até aqui; da percepção de todas essas exclusões e silenciamentos tratados no livro indicado. Que a ciência, a literatura e a educação sejam, cada vez mais, os meios para escolhas mais conscientes, mais empáticas e mais solidárias sobre que país queremos construir.
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