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  • Mônica Miliani Martinez

A Terceira margem de nós mesmos

Atualizado: 1 de out. de 2020


Autoria de Mônica Miliani Martinez, professora de redação, da eletiva de linguagens e humanidades e assessora de linguagens do ensino médio, graduada em linguística e mestranda em análise do discurso pela Unicamp .



Meu contato com a leitura é antigo, muito incentivado pelo meu pai. Embora o exemplo seja importante para a formação leitora, há algo crucial nesse processo que independe do outro: a relação entre o tempo de vida e os textos. O conto escolhido para essa reflexão é um belo exemplo disso. Ele foi lido pela primeira vez no auge dos meus 17 anos e, desde então, é uma leitura anual. Em março, quando as escolas fecharam e o isolamento se fez presente, o primeiro texto que li foi “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa. A prática se repete, pois conversando com meus fracassos e minhas vitórias, com meus medos e anseios, que esse conto se deixa ler. Certa vez, Julio Cortázar disse que “o romance vence sempre por pontos, enquanto o conto deve vencer por nocaute”. Eu fui e sou nocauteada por esse conto que, assim como outros textos de Guimarães Rosa, coloca o leitor em uma espécie de travessia, da aridez do sertão do mundo e de si para outros lugares que podem ser mais gentis e afetuosos.


O conto faz parte da obra “Primeiras Estórias”, publicado em 1962, quando Guimarães Rosa já era conhecido pela magia que imprime aos assuntos narrados e pelo uso de uma linguagem sinestésica, forte, que retrata a alma plural do Brasil por meio de uma expressão particular (com jogos de pontuação e ritmo), da criação de palavras tão precisas e tão próprias ao contexto que parecem não existir além do espaço temporal criado. O tempo de leitura das obras é único – é tempo que se faz travessia – porque há o convite para um processo que exige coragem de abraçar um fio discursivo intenso. O autor é famoso por criar narrativas que mexem com a imaginação do leitor, seja pela reflexão metafísica que elas proporcionam, seja pela pluralidade de sentidos que elas apresentam. Uma das coisas que mais me fascina em Guimarães Rosa é a capacidade que ele tem de permitir que o leitor se insira na malha discursiva como um forte colaborador para o desenrolar dos sentidos do texto, proporcionando "espaços de prazer", como afirma Roland Barthes (1977).

Retrato de João Guimarães Rosa


No enredo, uma família vive próxima ao rio: pai, mãe, dois filhos e uma filha. Um dia, o pai, um homem com uma vida comum para o contexto narrado, decide fazer uma canoa para viver no meio do rio. Ninguém entende a súbita mudança do homem: a esposa chama o padre e a polícia, o filho – narrador da história – pede para que seja levado nessa viagem com o pai, mas nada adianta, pois o chefe da família escolhe o isolamento total. Esse é o acontecimento que marca o início da narrativa, e essa ruptura (dos laços com a esposa, com os filhos, com a obediência, com o padrão, entre outras), no fio do discurso, amplia-se até atingir um momento no qual todos ali se acostumam com a ausência do pai. Todos menos um dos filhos: a mãe vai embora, a filha casa, o outro filho também parte, mas o “filho-narrador” atrela a própria existência às consequências do ato do pai: ambos seguem presos, presos entre as margens, presos em uma ausência que se faz presente.


O título desse conto permite uma chave de leitura muito interessante. Sabe-se que não há uma terceira margem do rio no mundo material, mas é ali – um lugar estável dentro do movimento – que o pai, a canoa e o rio existem. É no silêncio do rio que, em suspenso, acompanhamos a elaboração da falta, do luto e da melancolia de um abandono. E ali, entre a culpa do narrador, que luta a todo custo para (re) significar o vínculo paterno, no conflito constante do ser humano para encontrar explicações e justificativas para os fatos do mundo, criando narrativas mais ou menos suportáveis para o próprio emocional, a vida passa, sempre à margem de uma morte que não se nomeia, na busca incessante por um encontro que não se pode dar.



Todos da família veem o pai no rio, porém, esse pai parece não se dar conta da presença das pessoas ali em uma das margens, tentando aproximar-se dele, no esforço de ajudá-lo. A figura paterna permanece na mesma posição, num efeito fascinante que intriga o leitor porque há sempre um espaço para questionar se atitudes assim, que não se enquadram no roteiro das explicativas típicas, são loucura ou liberdade; covardia ou coragem. No clímax do conto, o filho já velho – depois de uma vida toda de “falimento”, como poeticamente menciona Guimarães Rosa – aproxima-se da margem do rio e diz: “pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto...agora, o senhor vem, não carece mais...o senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo seu lugar, do senhor, na canoa”. O pai, então, atende ao pedido do filho e aproxima-se da margem. No entanto, o filho se desespera com a aproximação do pai, como se fosse mais difícil viver sem esperança do que com a eterna espera - nem sempre é fácil deixar ir, abandonar a pedra que, por mais pesada que seja, por muito tempo, deu sentido para a existência do filho. Sim, o filho foge em desespero, corre e pede perdão: não consegue assumir o posto do pai, não consegue romper uma das margens e viver estável dentro do movimento do rio – o narrador escolhe “os rasos do mundo”, já que o rio se transforma em um símbolo de transição dos personagens, em constante travessia. Sem outra alternativa, o pai suspira e afasta-se, desaparecendo no horizonte silencioso do rio.


Há muitos questionamentos que atravessam a leitura do conto (e se isso não acontecer, há algo errado no processo leitor), como: por que o pai toma essa atitude? Por que apenas um filho espera pelo pai? Por que o filho se sente tão culpado pela decisão do pai? Todos esses "porquês" ecoam no pensamento e abrem espaço para a terceira margem de cada um: aquela que não cessa de procurar um lugar que não é aquele da profissional, da mãe, da esposa, da namorada, da solteira, da filha, da estudante. Em verdade, o nosso papel como leitores de Guimarães Rosa é tentar decifrar o não dito, encontrando no silêncio (do texto em si e/ou das pausas que fazemos para seguir a leitura) a chave que pode revelar as razões e as "desrazões" pelas quais um bom texto deixa mais perguntas do que respostas (e Rosa é especialista nisso).


Quando eu li esse texto na juventude, defini o tema da obra como uma história que narra o luto: o vazio acionado pela partida do pai jamais é preenchida – alguns se acostumam com o hiato existencial, outros não. Penso, em noites mais silenciosas, que Deus poderia mudar esse modus operandi celestial que faz desaparecer as pessoas. Eu sei, elas desaparecem fisicamente, mas ficam em lições, cheiro, prosa, poesia e saudade porque, no calar da razão, só existe vida. Na prática, a vontade é sentar-se às margens do rio e esperar o dia do encontro. Entretanto, hoje, quando eu reli a obra, vivendo em isolamento pandêmico, defino o tema – de forma provisória, claro, até a próxima leitura – como “milagre” porque, como bem canta Guimarães Rosa em outro conto - O espelho - “quando nada está acontecendo, há um milagre que não estamos vendo”. É assim que, em 2020, leio a terceira margem do rio, almejando um lugar que não é a margem direita, nem a margem esquerda, porque temos o péssimo hábito de aceitar uma vida “mais ou menos”, que se arrebenta para caber na margem de cá ou na margem de lá, mas que, a qualquer momento, pode assumir o posto de canoa e navegar no “entre-lugar”, abandonando a ilusão de pertencimento que nos faz parte e não todo.


Preciso de uma pausa para respirar. Ler Guimarães é um exercício de sensibilidade. Sempre que me pego pedra, dura, quase vazia, revisito o homem que faz as palavras dançarem poeticamente, movimento este que preenche meu horizonte de visão e permite, aos 37 anos, vinte anos após o primeiro contato com a terceira margem do rio, que eu me enxergue como canoa, avançando margens desconhecidas que permitem, com ou sem explicação, o encontro com a minha terceira margem, pois esse mundo estreito não é necessariamente capaz de enquadrar o rio em mim, o rio em nós.


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Referências

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1977.

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.


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