Neste texto, a professora de Língua Portuguesa do Fundamental I, Mariane Esteves, propõe uma reflexão sobre a literatura da autora nigeriana Chimamanda e ao mesmo tempo nos traz diversos questionamentos acerca da ancestralidade africana que existe no povo brasileiro, como um todo, e em cada um de nós.
Quando ainda na adolescência conheci Clarice Lispector, acreditei ter encontrado nela a única voz literária que poderia externalizar e representar sentimentos que, às vezes, eu mesma não descreveria tão bem. Para mim, Clarice passou a ser um lugar poético de visita constante para compreensão e aprendizados sobre conviver comigo e com os outros.
Diante de um amor tão arrebatador, jamais pensei em encontrar outra voz que revelasse tão bem meus segredos. Foi aí que conheci Chimamanda Ngozi Adichie, uma autora nigeriana tão distante de minha realidade sul americana e branca, mas que me revelou valores e verdades sobre os quais nunca (ou pouco) havia refletido.
As obras de Chimamanda são um convite à imersão no que de melhor a literatura africana tem a oferecer. Sua extensa obra é um paradoxal deleite à medida que nos faz embarcar em suas narrativas tão bem pensadas e construídas, mas, ao mesmo tempo, gera inquietações e questionamentos sobre nossas escolhas diárias e habituais.
Em suas páginas, Chimamanda nos revela uma África que nos foi por tanto tempo propositalmente negada e apagada. No imaginário popular, não faltam representações estereotipadas e preconceituosas dos numerosos países que formam aquele continente. E aqui cabe ressaltar algo óbvio, contudo frequentemente divulgado erroneamente: a África não é um país, mas sim um continente diverso e muito rico culturalmente.
No país onde Chimamanda nasceu, a Nigéria, antigos costumes ainda continuam a ser praticados, como a invisibilidade das mulheres nos espaços públicos. Em um dos relatos feitos, a autora revela que, com frequência, quando está em restaurantes, o garçom dirige-se apenas ao marido dela e nem um cumprimento recebe dele.
Paralelamente, Chimamanda vai mostrando ao leitor a riqueza cultural de seu país e o valor que lá é atribuído à família e à origem de cada um. Os personagem de suas histórias valorizam demais suas etnias e a terra de seus antepassados. Desprezar os mais velhos e os ensinamentos que trazem é algo impensado na obra de Chimamanda. Aquele é um espaço de revelação do valor da Nigéria e da África como um todo.
Em seu livro "Americanah" (2014) e também em sua famosa fala feita no TED Talk em 2009, "O perigo de uma história única", a autora conta sobre as mentiras assustadoras que teve que desconstruir quando foi para os Estados Unidos cursar a universidade. Uma colega de quarto ficou assustada quando ouviu a nova garota falando tão bem inglês e ficou ainda mais surpresa quando descobriu que, na Nigéria, o inglês é a língua oficial, já que também foi um país de colonização inglesa.
Criada em Nsukka, cidade universitária em que os pais lecionavam, Chimamanda cresceu em meio aos livros de estatística de seu pai, o matemático mais famoso da Nigéria, e a rotina administrativa de sua mãe, a primeira mulher na Nigéria a ocupar o cargo de reitora administrativa de uma universidade.
Já na faculdade, nos Estados Unidos, Chimamanda passou a produzir numerosos textos e se revelar como uma forte voz literária africana da contemporaneidade. Seu primeiro livro publicado, "Hibisco Roxo" (2003), foi bem aceito pela crítica literária e ganhou o Commonwealth Writer's Prize e do Hurston/Wright Legacy Award daquele ano.
Desde então, Chimamanda não parou de escrever e publicar obras que tiveram grande repercussão. Sua obra mais recente, "Notas sobre o luto" (2021), revela um olhar bastante profundo e delicado sobre o destino inexorável de todos nós: a morte. São muitas as passagens em que a autora nos revela sua humanidade e se despe de toda vaidade trazida pela fama e reconhecimento internacional. Dentro dessa obra, temos uma filha que relata a dor da perda abrupta e inesperada de um pai.
"Eu sou filha do meu pai. É um ato de resistência e uma recusa: é a dor lhe dizendo que acabou, e o seu coração dizendo que não; a dor tentando encolher seu amor para deixá-lo no passado, e o seu coração dizendo que o amor é no presente" (p. 108).
Como é difícil deixar no passado todos os bons momentos vividos ao lado de uma pessoa querida e torná-los apenas lembranças e saudade! As palavras não são capazes de representar as sensações de uma partida definitiva, faltam palavras e as que são usadas na tentativa de aplacar a dor parecem vazias e incapazes de surtir qualquer efeito.
Chimamanda nos revela em sua obra aquilo que deve ser o laço mais caro a todos nós: a humanidade. É o fato de sermos humanos que nos move e nos faz querer um mundo mais justo, igualitário e democrático. É por sermos homens e mulheres que desejamos que nossos filhos cresçam em países onde haja menos barreiras e mais literatura.
Que neste mês da Consciência Negra possamos voltar nosso olhar para dentro e enxergar a África que existe em cada um de nós, aquela que nos faz lembrar de quem somos e daqueles que estão (ou estiveram) conosco em nossa curta caminhada pelo mundo.
Professora Mariane: gostei demais do seu texto, apresentando-nos a autora e algumas de seus obras com um olhar delicado mas incisivo, sobre questões que não podem continuar invisíveis. Belo convite para reflexão neste mês!
Parabéns Profa Mariane pela sua sensibilidade e reflexões!
A diversidade cultural, os valores e o preconceito racial e étnico de uma África sempre massacrada pela pobreza, pelas doenças negligenciadas e pela opressão, ganha voz pelo poder da literatura. Parabéns pela abordagem e por nos apresentar essa grande autora.